terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

CARVOADAS II

Neste fim de semana, em Gralhas, andámos às carvoadas. Dois dias a recordar como era há 50 anos. João Bengalas, D. Celeste e Bento lembraram as vezes que foram ao monte apanhar os torgos de urze para fazer carvão. 
Há uma ciência para fazer a cova. Não é preciso cavar muito fundo. Mas é obrigatório cobrir o fundo com carqueja e urze para o lume pegar. Vão-se deitando os torgos na cova e vai-se chiscando fogo. Só quando os torgos de cima já estão a arder é que se pode começar a cobrir a cova. Primeiro com pedras lascadas, depois com torrões de terra e, finalmente, com terra solta. 





No dia seguinte volta-se e destapa-se a cova na qual se fez o sinal da cruz para o diabo não vir por ela. Colhe-se o carvão à mão. E, se fosse há 50 anos, carregavam-se os burros e ia-se a Chaves vendê-lo:
Já tínhamos as freguesas. Vendíamos para as senhoras que cozinhavam. Tinham aqueles fogões grandes a carvão, cozinheiras como eu lhe chamava, ainda tive uma dessas. Não era nada para revenda. Vendíamos às sacas e havia pessoas que ficavam com duas. As duas sacas nem davam 20 escudos. Nem 20 escudos eu fazia nas quatro sacas que levava. Aquilo era uma miséria! (Maria, 22-7-2011).
Era frequente as freguesas indagarem da qualidade do carvão. Aquele que esperrinchava, ou espirrava, era o carvão que tinha sido molhado para poder ser colhido sem queimar as mãos.:
Vinham as senhoras à janela: Ó minha senhora, o carvão é do que esperrincha? É de urze? (Fátima, 13-7-2011). 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

CARVOADAS I



Na serra da Lagoa, num tempo em que havia limites e em que as pessoas viviam debilitadas, homens e mulheres, rapazes e raparigas da aldeia de Gralhas faziam carvoadas às escondidas.
Nesse tempo, trabalhava-se para o caldo ou para a merenda. A produção de carvão, mais frequente nos meses frios de inverno, permitia compor o débil orçamento das casas:
Mas a vida era assim, a gente não tinha de onde lhe viesse nada, tinha que comer. Valíamo-nos disso, da floresta, e depois a gente semeava a batatita, como agora, as couvinhas, cenoura, cebola. A gente aqui não passa fome, mas dantes passou-me muita, era uma sardinha para três. A terra dá tudo (Fátima, 13-7-2011).
A memória coletiva referente às últimas carvoadas de Gralhas remonta à década de 1960, embora nos anos de 1970, já depois da Revolução de abril, ainda se tenha produzido, ainda que esporadicamente, o carvão.
Havia quem fizesse carvão porque não tinha outra forma de se sustentar. Eram os cabaneiros sem terras próprias que, no verão, se ocupavam dos trabalhos agrícolas nos terrenos dos outros e, no inverno, a par das carvoadas, guardavam o gado dos proprietários.
Mas havia, também, quem fizesse carvoadas apenas para ter dinheiro para comprar um pano para fazer uma blusa ou uma saia. Estas carvoadas esporádicas, que não se enquadravam numa prática de sobrevivência financeira da família, eram sobretudo realizadas pelos mais jovens. Sozinhos ou em grupo, com um conhecimento mais ou menos sólido sobre todas as etapas do processo, usavam o dinheiro resultante da venda do carvão para aquisição de roupas ou para poderem ir a alguma festa da aldeia ou de aldeias vizinhas.
Comecei a fazer carvoadas com 13, 14 anos Numa ocasião, que eu queria vestir uma roupinha à minha irmã, tinha de ganhar dinheiro que a minha mãe, coitada, não tinha para mo dar. E, então, fiz muito carvão e a minha irmã foi comigo vender. E depois ela já era uma mulherzinha e eu disse-lhe: já tens que andar vestidinha como ando eu, e quanto custará? Outra ocasião, uma amiga minha disse assim para mim: ó Adília vem aí a senhora da Saúde e eu queria um vestido e a minha mãe não mo compra, tu podias ir à carvoada comigo. E eu digo-lhe assim: e tu sabes fazer carvão? Tu sabes arrancar torgos? E ela disse: mas tu ensinas-me! Fiz carvão até aos 19 anos (Adília, 18-8-2011).
A grande dificuldade na produção do carvão residia na interdição da sua prática. De facto, a ilegalidade das carvoadas - até para cortar o mato era necessário uma licença - obrigava a que parte das operações técnicas tivessem de ser realizadas durante a noite:
Quem não tinha de comer tinha que andar sempre assim ao sobressalto (Aida, 22-7-2011).
Temiam-se, para além dos guardas florestais, os rondistas, os homens do terreno que a guarda enviava para a serra com o objetivo de impedir o corte dos arbustos e a queima das urzes. Havia guardas florestais e rondistas mais rigorosos e com pouca empatia para com os infratores:
Ainda fui responder à mor do carvão, mas não deu em nada. Tinha 17 anos. Porque eu namorava com um rapaz e tínhamo-nos zangado e vínhamos embora de queimar o carvão e diz ele assim: não o haveis de trazer, cangalho! E eu respondi-lhe assim: não, mas trago, c...! E eu não sei, foi-nos acusar ao guarda! E depois no tribunal perguntaram-me como é que fui fazer o carvão, porque precisava, se queria vestir tinha de o ganhar que a minha mãe não tinha para mo dar. E depois deram-me pena suspensa, não sei se foi três ou quatro anos, mas pagar não paguei nadinha. Nadinha deste mundo. E foi assim a vida do carvão (Adília, 18-8-2011).

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

DONA LÚCIA E AS FILHÓS

Já aqui falei na D. Lúcia e da casa filhoeira onde foi criada. Uma casa onde a mãe fazia filhós todo o ano porque o pai era muito filhoeiro. Na primeira entrevista que lhe fiz, já há largos meses, combinámos que eu acompanharia todo o processo de confeção das filhós lêvedas. E, ontem, cumpriu-se o prometido.


Peneirou-se a farinha milha. Sete quilos e meio. Anda-se de roda com a farinha, mas não com a peneira. Assim se garante que o farelo fica todo retido na malha. Farelo que é, depois, deitado à fazenda.


Para sete quilos e meio de farinha milha, bota-se um quilo de farinha triga. Mas antigamente, sem trigo disponível, usava-se centeio. Sal, uma presa de sal, ou seja, uma mão cheia. Fermento de padeiro, água e muitos, muitos ovos. Bate-se com a mão firme que abre e fecha dentro da massa até esta ter a consistência desejada. Como se fosse a massa de um bolo.


Também não pode faltar ciência na fogueira que se faz para aquecer a sertã. Um lume certinho, a lenha disposta de modo uniforme para que não se queimem as filhós.


Unta-se a sertã com o pinzel (também há quem lhe chame pinzelo) feito com uma cana e um pedacinho de algodão que é atado numa das pontas. Mergulha-se na gordura e unta-se de cada vez que se bota uma nova leva de filhós na sertã.


D. Lúcia faz quatro de cada vez. Já tem a mão treinada para fazer correr, com uma concha, a quantidade de massa que é certa.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

LÁ EM BAIXO

 Gasómetro

Os mineiros da Borralha usavam os gasómetros para se alumiarem. Havia muitas poeiras e a empresa, depois do 25 de abril, passou a fornecer leite, como recorda Mário:

O nosso camião ia buscar semanalmente o leite Agros. No princípio começaram a impor que fosse dado o leite ao início do turno mas as pessoas não ficaram recetivas porque tinham acabado de tomar o seu pequeno almoço. Uns poderiam tomar, mas a outros davam-lhes problemas no intestino. Isso passou por mim porque eu era o presidente da comissão de trabalhadores e então achámos por muito bem que o leite não fosse distribuído a essa hora. Depois, o contrato foi mais explícito e já indicava uma quantidade exata, um litro. Repare que antes não se dava um litro e era muito complicado dar um copo de leite. Depois quando foi instituído o protocolo em que se distribuía o leite, foi a melhor coisa que se fez, porque davam de manhã e as pessoas levavam e bebiam se queriam ou poderiam levar para casa. Contudo, fazer com que o trabalhador fosse tomando o leite no percurso não dava por questões práticas. Por isso mesmo chegou-se à conclusão de que seria melhor entregar o litro de leite no término do trabalho. Dava para a alimentação deles ou dos filhos e no outro dia traziam o termo com o café se entendessem.

Mas havia quem preferisse guardar esse leite e dá-lo aos filhos. Era o que fazia Manuel Baqueiro, quando, depois de passar anos a guardar as vacas e como capataz na florestação da Serra da Cabreira, trabalhou nas Minas como picheleiro:
A minha arte era boa mas perigosa. Picheleiro, ar é água. Nas minas era ar e água também, não andava nos escombros. Era consertar mangueiras, meter mangueiras. Não podiam ir trabalhar sem regar os escombros, como botavam fogo, ficava aquele tufo. Já morreu quase tudo quem andava lá comigo. Era dar o litro de leite a cada um. Mas leite frio, lá na mina, como é que se podia, não prestava para nada. Deixava-o cá fora e trazia-o para casa. O meu não o levo para a mina. Metia-o cá fora e à vinda metia-o à saca e vinha para casa. Tive seis filhos e três filhas! Foi trabalhar! 

Não era a única bebida que se levava lá para baixo. No gato levavam o vinho para acompanhar as merendas feitas de pão e posta de bacalhau frito.




Gato

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

WIP


Agora com a preciosa ajuda de outro ex-estagiário do Ecomuseu, o Paulo.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

MATAR SAUDADES DO MAR


Em Castelo do Neiva.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

WIP


Os dias têm sido passados a escrever. Ainda faltam algumas incursões ao terreno, mas até ao final de março, o trabalho vai ser feito à secretária. Agora, com a Dina, a câmera-woman, metida ao barulho.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

ROCA PIPOCA


Apareceu-me aqui à porta há umas semanas. Assustada, magra, só comia quando atirava a comida para longe e me afastava. Ao fim de uns dias já me vinha comer à mão. Na sexta-feira 13, noite gelada, enganei-a e consegui fechá-la dentro de casa. Dei-lhe mimo até ela sossegar.  Mas continuava com medo de tudo.  Nos dias seguintes, entrar e sair de casa era uma aventura e, cá dentro, nunca saía da cama que improvisei para ela. 
O veterinário vacinou-a, desparasitou-a e verificou que tinha chip. Por acaso, um cliente dele. A criatura disse que esta tinha sido roubada, juntamente com outra, há dois anos (a Roca Pipoca tem  três anos) e que havia uma que ele queria de volta a qualquer custo. Nunca me contactou, nunca apareceu onde moro. Uma mentira contada ao veterinário para limpar a face.
Andei com o coração nas mãos  porque me afeiçoei à bichinha e tenho a certeza que comigo ficará melhor do que com um estupor que foi capaz de abandonar uma cadela que tem uma patinha com um ligeiro defeito.
É a minha Roca Pipoca.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

DO PATRIMÓNIO ALIMENTAR

Queimada galega na Feira Medieval de Chaves de 2008

A inclusão do património alimentar no domínio do Património Cultural Imaterial (PCI) é explícita no texto da Convenção para a Salvaguarda do PCI de 2003. Com efeito, no domínio das Práticas sociais, rituais e eventos festivos, uma das formas identificadas é a das “tradições culinárias”, enquanto que no domínio do Conhecimento e práticas relativas à natureza e ao universo, uma das áreas identificadas é a das práticas alimentares. A inclusão do património alimentar no domínio do PCI é um bom exemplo de como as fronteiras entre a materialidade e a imaterialidade são nebulosas, e as compartimentações entre uma e outra podem ser totalmente artificiais e estéreis.
Três anos antes da Convenção de 2003, Portugal, que só ratificaria o texto em 26 de Março de 2008, já havia demonstrado sensibilidade para reconhecer o valor patrimonial do que institucionalmente veio a chamar gastronomia portuguesa. Com efeito, em 2000, uma Resolução do Conselho de Ministros tinha considerado a gastronomia como valor integrante do património cultural português.
Mais: ainda em dezembro do ano 2000, no âmbito do Programa da Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade, a Comissão Nacional da UNESCO elabora uma lista indicativa de bens portugueses onde inclui a doçaria tradicional portuguesa.
Um ano depois, seria criada a Comissão Nacional de Gastronomia, instituída como órgão responsável pelo levantamento e qualificação do património gastronómico nacional. Com esta Comissão, pretendia-se intensificar as medidas de preservação, de valorização e de divulgação da gastronomia nacional. Importa também referir que é ainda no ano de 2001 que, na Lei de Bases da Política e do Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural, é referida, a propósito dos bens imateriais, a especial proteção que devem merecer os modos de preparar os alimentos.
Em 2002 estabeleceu-se a criação de uma base de dados designada por Gastronomia, património cultural, que seria coordenada e desenvolvida pela Comissão Nacional de Gastronomia. A esta Comissão cabia, também, a delimitação de dez regiões gastronómicas, cujo objetivo seria o de contribuir para a organização regional e nacional dos concursos Gastronomia, património cultural. No entanto, a Comissão Nacional de Gastronomia seria extinta em 2006, no âmbito do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE).
Não se pode, contudo, considerar recente esta preocupação com a preservação dos patrimónios alimentares regionais. O período do Estado Novo é rico em iniciativas deste género. De facto, neste período verifica-se a valorização da diversidade regional e um intervencionismo estatal que procura promover a produção alimentar portuguesa no exterior e o seu consumo no interior, assim como desenvolver o turismo.
Com uma matriz tradicionalista elevada a política cultural, os patrimónios alimentares são sujeitos a processos de recriação e invenção e exploram-se os regionalismos do país para justificar a nova divisão administrativa. O Secretariado Nacional de Informação lidera esses processos pela via dos concursos gastronómicos regionais e nacionais e das ementas das Pousadas de Portugal. Aliás, as pousadas ilustram as preocupações nacionalistas que sustentam a política de desenvolvimento do turismo a qual era forjada a partir da valorização do que era codificado como sendo regional e nacional. As pousadas funcionavam, deste modo, como o perfeito cenário nacional/regional, onde às comidas regionais se juntava a baixela regional e o mobiliário e se enalteciam os produtos portugueses. Poucos anos antes, note-se, já havia quem dedicasse obra inteira, num registo folclorista, ao enaltecimento das doçarias regionais. Um dos melhores exemplos é o de Emanuel Ribeiro e do seu livro O Doce nunca amargou editados nos finais da década de 1920.
Mais tarde, a Rádio Televisão Portuguesa realizava em 1961 o Concurso de Cozinha e Doçaria Regional Portuguesa, a partir de milhares de receitas enviadas de todos os recantos do País que foram escolhidas segundo os critérios de representatividade e autenticidade.
Sintoma da importância dada ao património alimentar em Portugal é, também, o aparecimento das confrarias gastronómicas desde meados da década de 1980 (a mais antiga é a Confraria dos Gastrónomos do Minho, fundada em 1986), mas que se intensifica, sobretudo, a partir de finais dos anos de 1990, apostadas na preservação dos patrimónios alimentares, como se verá discutido no ponto seguinte.
Contudo, a existência de associações de índole gastronómica é muito mais antiga em Portugal. Referência incontornável é a Sociedade Portuguesa de Gastronomia, criada em Janeiro de 1933 pela mão do gastrónomo António Maria de Oliveira Belo (Oleboma) que se esforçou em nacionalizar a cozinha portuguesa. A Sociedade tinha como fim último: “Fazer ressaltar a cozinha nacional, melhorando-a, elevando-a ao lugar que deve ter, defendendo a cozinha regional e os produtos alimentares portugueses de primeira qualidade”, expressando a ideia da cozinha nacional como síntese das cozinhas regionais.  As preocupações de Oleboma parecem inspirar-se naquilo que se passava em França, ou seja, numa maior atenção dada às cozinhas provinciais, depositárias das tradições nacionais. A atenção dada a estas cozinhas, que já vinham despertando o interesse dos parisienses desde os finais do século XIX, teve tradução na criação de sociedades e clubes de cariz gastronómico, como o Club des Cent, um clube desportivo e gastronómico cujos membros, conhecedores e amantes da comida e automobilistas, percorriam as estradas das províncias em busca de lugares onde a tradição culinária tivesse sido preservada.
E pronto, vou fazer o meu sumo matinal de cenoura, maçã e laranja.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

TRATADOS DO ESTÔMAGO


Bolinhos de millet


Ingredientes
1 chávena de millet e 3 chávenas de água (uso sempre esta proporção)
1 cenoura grande
1 colher de sopa de sementes de abóbora
1 colher de sopa de sementes de girassol
1 pitada de cominhos
1 pitada de cúrcuma
1 vagem de pimenta malagueta seca picada
sal qb
azeite qb
1 colher de sopa de sementes de chia demolhadas num copo de água
3 colheres de sopa de cebolinho

1. Numa frigideira larga colocar o azeite, as especiarias e, em lume médio, deixar frigir ligeiramente.
2. Juntar o millet previamente lavado e escorrido, a cenoura cortada em pedaços pequenos, as sementes de girassol e abóbora e deixar tostar um pouco mexendo sempre.
3. Adicionar a água e o sal e, em lume brando, deixar cozer até toda a água ter sido completamente absorvida (verificar se a água é suficiente para cozer o millet; por vezes, é necessário juntar mais um pouco de líquido).
4. Deixar arrefecer e juntar o cebolinho picado e as sementes de chia escorridas. Para escorrer a água em excesso das sementes de chia, usar um passador fino; aproveita-se a água gelatinosa que fica no passador já que a mesma funcionará como elemento agregador.
5. Moldar os bolinhos com as mãos untadas em azeite e levar ao forno até secarem completamente. Uso uma placa de barro para cozer e, como tal, não se torna necessário untar.

É muito provável que Berchoux nunca tenha ouvido falar destes bolinhos. Embora gostasse de escrever sobre gastronomia. O termo gastronomia, derivado do grego antigo (gastro ‘estômago’ + nomos ‘tratado’), foi usado pela primeira vez por Jacques Berchoux[1] no título de um poema: La gastronomie, ou l’homme des champs à table. Mas é Brillat-Savarin que ficou conhecido por ser o primeiro a definir o objeto da gastronomia.
“A gastronomia é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta. Ela atinge esse objetivo dirigindo, mediante princípios seguros, todos os que pesquisam, fornecem ou preparam as coisas que se podem converter em alimentos. (…) O assunto material da gastronomia é tudo o que pode ser comido; seu objetivo direto, a conservação dos indivíduos; e seus meios de execução, a cultura que produz, o comércio que troca, a indústria que prepara e a experiência que inventa os meios de dispor de tudo para melhor uso”.
Embora nesta definição não esteja explícito, o certo é que, na Fisiologia do Gosto, o entendimento da gastronomia enquanto excelência é transversal a toda a obra de Brillat-Savarin. Esta é, aliás, uma das leituras que se pode fazer do termo. Com efeito, nas referências ao termo gastronomia, são comuns expressões como “excelência culinária”, “criatividade culinária socialmente valorizada”, “arte de preparar refeições e de comer bem”, “arte de degustar os alimentos”, “estetitização da cozinha e das maneiras à mesa”, “perfeição da cozinha”.
A gastronomia aparece, deste modo, associada à prática de uma culinária elevada a arte e, embora as suas origens possam ser traçadas até aos gregos e em especial aos romanos, como fenómeno social moderno, ela surge na França do início do século XIX . Aliás, os franceses já tinham adquirido, entre os séculos XVII e XVIII, certezas quanto ao facto das suas maneiras de comer serem superiores às dos outros povos europeus.
Houve um conjunto de condições sociais, económicas e culturais que permitiram o aparecimento da gastronomia, não apenas enquanto prática culinária sofisticada, mas também enquanto texto literário. Desde logo, há que referir que foi apenas quando os fornecimentos de comida estabilizaram que houve necessidade de procurar novas formas de diferenciação social, a qual deixou de ser feita com base na quantidade de comida ingerida (até porque existem limites físicos para aquilo que se consegue comer) e passou a depender da adoção de outras formas relacionadas com a delicadeza e o auto-controlo. Com efeito, a abundância, a variedade e a disponibilidade imediata dos alimentos, juntamente com um esquema de produtores experientes (os chefs) que atuavam num lugar culturalmente específico (o restaurante), sendo ambos suportados por consumidores conhecedores e ricos, e uma tradição secular cultural (culinária), ou seja, a comida, as pessoas, os lugares, as atitudes e as ideias, constituíram os ingredientes que tornaram possível o aparecimento da gastronomia.
De importância fundamental para o desenvolvimento da gastronomia são os textos que representam um segundo nível de consumo (o primeiro nível de consumo corresponde ao ato de comer). Estes textos permitiram não só alargar o público muito para além dos consumidores e produtores imediatos, funcionando como agentes de socialização do desejo individual e redefinindo o apetite em termos coletivos, como também estabilizar um produto, efémero por natureza, que deve ser destruído para ser consumido: a comida.
Os gastrónomos Grimod de la Reynière, Câreme e Brillat-Savarin, fundadores da gastronomia enquanto género literário, não somente cultivavam o gosto refinado pelos prazeres da mesa, como também escreviam acerca disso - representavam a autoridade orientadora para uma segunda categoria de consumidores gastronómicos: os leitores. Mas se o discurso era autoritário, era também democratizante, pois os textos gastronómicos, juntamente com os manuais de etiqueta, permitiam o acesso de uma informação, que à partida era elitista, a um número crescente de indivíduos. Os textos apresentavam alguns temas centrais: 1) definição do que se considera correto em termos de composição de menus, sequência dos pratos, técnicas de serviço; 2) dimensão dietética, porque identifica os alimentos/comidas e as formas de os confecionar que se consideram corretas e saudáveis; 3) uma componente histórica, mítica, acerca da origem das comidas, das técnicas, dos seus nomes ou dos seus criadores; 4) evocação nostálgica de refeições memoráveis. Mas o modelo não era rígido, pois nem tudo o que se considera texto gastronómico continha estes quatro componentes.
Mas esta é apenas uma das leituras que se pode fazer do termo gastronomia. Um outro entendimento associa a gastronomia a uma prática culinária mais rural, o que é já visível nas cartografias das cozinhas regionais francesas dos finais do século XIX e no aparecimento das sociedades gastronómicas de cariz regionalista, fundadas por parisienses preocupados com a preservação dos costumes locais. A colagem do termo gastronomia a uma prática culinária mais popular vai ganhar um novo fôlego no período entre as duas Guerras, revelando-se nos guias gastronómicos que espelham o consumo turístico e que tem tradução explícita na secção gastronómica da Exposição Universal de 1937, em Paris, dedicada às cozinhas regionais das províncias francesas .
Em Portugal, o Estado Novo, através do seu aparelho de propaganda, valorizava as comidas da ruralidade, mas o termo gastronomia não era o mais frequentemente usado, bem pelo contrário. Uma consulta a dezenas de revistas Panorama do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, revela que os artigos relativos a essas comidas da ruralidade privilegiavam o termo cozinha portuguesa. Mais: apenas um dos autores (com apelido francófono) se refere, no título do seu artigo, à gastronomia do norte mas utiliza, ao longo do texto, termos como cozinha e culinária. Maria de Lourdes Modesto, duas décadas depois dos artigos publicados na revista Panorama, edita aquela que é, ainda, se não a principal referência, pelo menos uma das mais importantes da cozinha tradicional portuguesa. Na obra, precisamente intitulada Cozinha Tradicional Portuguesa, a autora assume “(…) um lento mas emocionante levantamento do património culinário português”, embora utilize, na introdução, o termo gastronomia. A colagem dos dois termos é feita, aliás, sem preconceito, mas é claramente o termo cozinha, adjetivada de tradicional, que domina. O livro também beneficiou dos milhares de receitas enviadas aquando da realização do Concurso de Cozinha e Doçaria Regional Portuguesa (emitido em 1961 pela RTP) e que permitiu à autora recolher “(…) milhares de receitas enviadas de todos os recantos do País, a maior parte com genuínas raízes locais”  escolhidas segundo os critérios de representatividade e autenticidade.
Pode, de facto, considerar-se que existe, atualmente, um entendimento mais democrático do que significa o termo gastronomia, deixando o mesmo de estar exclusivamente associado à alta cozinha ou alta culinária. Tal posição é defendida por Scarpato que distingue entre a gastronomia entendida enquanto prazer proporcionado pelo melhor da comida e da bebida, e gastronomia como dizendo respeito a tudo aquilo que se come e se bebe. O termo parece, aliás, ser eleito entre aqueles que se dedicam aos estudos sobre a rentabilização turística dos patrimónios alimentares locais e regionais, reflexo, ou não, de uma utilização crescente por parte, quer dos poderes públicos centrais, regionais e locais, quer das muitas estruturas da sociedade civil apostadas na preservação desses patrimónios, de que são o melhor exemplo as Confrarias Gastronómicas.


[1]  Berchoux aparece por vezes referenciado não como Jacques, mas sim como Joseph.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

DAS MEMÓRIAS DO CONTRABANDO EM CHAVES



Foi uma das mulheres que mais se recordou nas provas de doutoramento: a contrabandista Marquinhas. Conheci-a numa tarde fria de janeiro há quatro anos. Uma mulher com as mãos frias e os olhos quentes, quentes como os fornos transmontanos. Nasceu em 1938 na aldeia de Paradança, em Mondim de Basto, e aos dez anos foi emprestada a uma família de feirantes. É mãe de Lila, outra das mulheres que entrevistei. Dos avós maternos e paternos não tem qualquer lembrança. O pai, de Vila Nune, freguesia de Cabeceiras de Basto, abria minas de água para os lavradores e a mãe, de Fermil de Basto, Celorico de Basto, era empregada dos correios. Marquinhas teve nove irmãos. Quatro morreram sem ela os ter conhecido. Com os outros, pouco contacto teve ao longo da vida. Duas irmãs vivem ainda no Porto.
Por volta dos cinco meses, a família de Marquinhas muda-se para Padredo, localidade da freguesia de Canedo de Basto, do concelho de Celorico de Basto. Numa das idas à feira, uma conhecida feirante de loiças perguntou à mãe de Marquinhas se não a queria deixar ir trabalhar para sua casa. A mãe achou que a filha era muito nova, mas Marquinhas gostava de trabalhar e queria dinheiro para comprar um cordão de ouro. Tanto pedinchou e choramingou que os pais, tempos depois, acabaram por a deixar ir viver para casa dos feirantes em Guimarães. 
Se os primeiros dias foram difíceis de suportar, ao fim de um mês Marquinhas já se tinha adaptado. Havia três meninas e um menino lá em casa. No início, Marquinhas brincava uns dias e trabalhava noutros. Fazia as camas, lavava a loiça, descascava batatas. Aprendeu a cozinhar pelo buraco da fechadura. A cozinheira lá de casa, embora lhe destinasse certas tarefas culinárias, não lhe ensinava tudo. Mas Marquinhas tinha vontade de aprender a fazer rissóis, pastéis de massa folhada, croquetes e bolinhos de bacalhau. As chaves eram muito grandes e os buracos das fechaduras também. Espreitar era a solução. A casa só ia no Natal e na Páscoa. Não se importava. Andava mais limpa, mais bem vestida e tinha confortos que na casa dos pais não existiam. Quando Marquinhas tinha 15 anos, a cozinheira adoece e a patroa encarrega-a de cozinhar para a família. Ganhava 70 escudos por mês. Pediu um aumento e, como não lho deram, foi trabalhar para outra casa onde lhe pagavam mais 50 escudos. Aí ficou por três anos. Melhorou os conhecimentos culinários com a ajuda da dona da casa, mas também com as amigas cozinheiras de outras casas que com ela se juntavam ao domingo. Saiu desta casa para se casar aos 22 anos.
Com o marido, nascido em 1935 em Cabeceiras de Basto, foi viver para Arco de Baúlhe. Estiveram ali três anos. Durante esse tempo, ele tirou a carta de condução no Porto. O primeiro filho do casal morreu com meningite com um ano de idade. Depois, nasceria Lila. O emprego na Rodonorte traria a família para Chaves em 1963.
Marquinhas começou a trabalhar como criada aos dias e às tardes em várias casas particulares. Numa delas apenas cozinhava, nas outras fazia limpezas. Entretanto, nasceram os dois irmãos de Lila, um em 1965 e o outro em 1972. Mas os ganhos eram poucos e pediu ao marido para começar a vender nas feiras. Comprava fruta nos lavradores das aldeias em redor de Chaves e depois vendia na praça. Depois, começou também a vender frangos, galinhas e ovos. Diz que não queria que nada faltasse aos filhos e que foi uma negra de trabalho. Marquinhas iniciou-se, também, na compra e venda de terrenos e de casas. Os lucros conseguidos com os negócios permitiram-lhe comprar um carro, embora não tivesse carta pois não sabia ler nem escrever. O marido não lhe autorizou os estudos. Tinha medo que, com carta, a mulher lhe pudesse fugir. Mas Marquinhas queria dar mais conforto aos filhos. O contrabando parecia ser a solução.
Começou por contrabandear com a ajuda do marido. Depois, juntou-se com outras mulheres. Passava a fronteira em Vila Verde da Raia, atravessando o ribeiro a pé e, com o tempo, foi aumentando as quantidades da mercadoria contrabandeada, os lucros e as gentes que trabalhavam para ela. Chegou a ter a seu cargo mais de 70 pessoas. O filho mais velho também a ajudava na fronteira, mas a Lila nunca foi permitido trabalhar no contrabando a não ser na receção das mercadorias em casa. O dinheiro acumulado permitiu-lhe fazer a casa onde agora vive com o marido. Construiu, também, um espaço onde fez o pequeno mini-mercado. Diz que era para disfarçar o contrabando. Com um comércio aberto, ninguém ligaria tanto às carrinhas sempre paradas à porta da sua casa. Aos cinquenta e quatro anos, a diabetes que a pôs quase cega obrigou-a à reforma. Diz que poderia ter ido mais longe, muito mais longe, se tivesse aprendido a ler e a escrever. Vive com o marido na freguesia da Madalena. Nas casas ao lado da sua, vivem os filhos.
As análises ao contrabando estão frequentemente centradas nas populações rurais encostadas à linha de fronteira que complementam a atividade agrícola com a prática do contrabando no sentido de suprir carências. Mas os relatos de Marquinhas mostram que essa prática agregava, igualmente, as pessoas da cidade. O bacalhau assume uma centralidade nessas práticas do contrabando de comida, situando Chaves numa escala global. O gadídeo entrava às toneladas pela fronteira de Chaves e era depois vendido para comerciantes de todo o país. O marido de Antónia, outra das minhas informantes, justificava, de forma jocosa, a importância de Chaves nesse comércio ilegal:


O meu marido sempre esteve ligado à agricultura, mas logo após o 25 de Abril foi nomeado Secretário de Estado para as pescas. Quando isso aconteceu, houve uma jornalista da rádio que lhe faz uma entrevista e que pergunta como é que um homem da agricultura vai para as pescas e que conhecimento é que ele tinha em termos de pescas, ele que até era oriundo de uma cidade do interior. Olhe, sabe o que ele lhe disse? “Chaves não tem mar, mas tem o maior porto pesqueiro do país”. E a jornalista pergunta: “Como, se não tem mar?”. E ele respondeu: “Porque passa por lá todo o bacalhau que o país consome!”. Por causa do contrabando! (Antónia, 13-7-2008)
O relato de Marquinhas, que passou por conta própria e foi patroa de contrabando organizado em Chaves, revela uma realidade perigosa mas aliciante, fundada na fuga ao pagamento dos direitos de alfândega, feita de tempos noturnos (porque à noite era mais fácil iludir a guarda), de redes sociais alargadas, de solidariedades femininas e masculinas do lado de cá e de lá da fronteira, de compromissos e corrupções, de ilegalidades mais ou menos aceites, num tempo anterior à entrada de Portugal na CEE, em 1986.
A primeira vez que Marquinhas se confrontou com o contrabando, foi a pedido de umas mulheres que a conheciam e que na Galiza lhe pediram para ela trazer umas mercadorias para Chaves. O dinheiro que lhe deram pelo favor prestado levou Marquinhas a considerar as vantagens do contrabando.
Uma vez fui a Espanha buscar um bocadinho de bacalhau e um garrafão de azeite só aqui para casa. Estavam lá umas contrabandistas que me disseram: “Ó tia Marquinhas, podia-nos levar umas colchas na sua carrinha que ninguém desconfia, porque não é conhecida”. E eu trouxe um embrulhito de bacalhau e mais umas coisitas escondidas na carrinha. Elas à noite vieram buscar aquilo e naquela altura deram-me duzentos escudos. E eu disse assim: “Ai, não quero nada, eu trouxe por trazer, não tem nada que me dar”. “Não, a senhora trouxe também tem de ganhar algum”. E eu pensei: “Caramba, para me dares duzentos escudos, quanto não ganharás tu?!”. (Marquinhas, 24-1-2008)
Iniciou-se então com a ajuda do marido, mas depois, na companhia do filho mais velho, ganhou autonomia.
Primeiro, comecei a vender uns chocolates, umas garrafas de azeite, de óleo, assim umas coisitas, a pessoas particulares. O meu marido fazia a carreira de Vilarelho, dormia por lá três noites, ia a Espanha e trazia algumas coisinhas. Eu nunca tive carta de condução, porque o meu marido nunca ma deixou tirar, e mesmo quando comprei o primeiro carro, era ele que conduzia. Mas depois comecei eu a ir. Olhe, a primeira vez, disse ao meu marido: “Olha, vou a Espanha ver o que se possa trazer, porque anda lá tanta gente a trabalhar”. E ele disse: “És maluquinha, mulher, nem penses nisso, não vais nada! Ainda para perderes o pouco que temos”. Mas fui. Naquela primeira vez, eu e o meu filho mais velho trouxemos logo um saco de feijão. O saco tinha 40 quilos. Dividi para mim, para o meu filho e para um miúdo que vivia connosco. Fiz três farditos de feijão. Lá em Espanha. A gente dividia para se poder transportar e não ser o peso só para um. Passei aquilo e passei muito bem. Fui buscar outro. Passei a mesma coisa. Naquele dia, passei três sacos de feijão, de 40 quilos cada um. Correu muito bem, cheguei cá e enchi os sacos para se vender. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
As passagens na raia húmida eram feitas de dia e de noite. Mas a noite, pela maior cobertura que dava aos contrabandistas, era o tempo preferido para a passagem clandestina de mercadorias. Marquinhas integrava-se numa rede feminina de contrabando, partilhando os fretes dos carros de praça e os perigos da empreitada.
No início trabalhava sozinha com o meu filho. Mas ia junto com outras mulheres até à fronteira. Íamos na carreira ou no carro da praça às quatro ou cinco para dividir o frete por todas. Um carro só para uma pessoa ficava caro. Quando o carro ficava cheio de mercadoria, vinha só uma trazer as coisas para não se perder tempo, mas trazia a mercadoria de todas. Ou então deixava lá na fronteira um filho meu e um miúdo que tínhamos cá em casa. Eu vinha a casa trazer a mercadoria e, enquanto isso, eles iam a Feces a trazer mais coisas até ao sítio onde a gente carregava os carros. Outras vezes vinham eles a casa e eu ia a cima trazer carga para outro carro. Havia taxistas que já estavam ali sempre à espera que a gente viesse. De noite ou de dia. Na fronteira tínhamos de atravessar o rio a pé. Ainda conheço o sítio. Ai, passar o rio, ai Jesus. Ai Jesus, Jesus, o frio! Se agora estou aleijada…A gente nunca trazia meias ou então cortávamo-las à frente, nos dedos; puxava-se a meia calça aqui para cima, limpávamos os pés ao passar o ribeiro, com o lenço das mãos tirava-se a maior água, tornava-se a puxar a meia para baixo e caçava-se com os dedos na frente. Às vezes até tínhamos que esfregar as pernas que até se adormeciam. Nunca tive medo, nem nunca estive doente! E outras vezes tínhamos que passar às costas dos homens, porque o rio era muito grande. Durante três anos ainda passei o rio a pé. Tanto fazia ser inverno ou verão. Lá fui andando, comecei-me a habituar com aquele ambiente. Andei ali dois anitos assim. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Marquinhas trazia azeite, óleo, ananás e pêssego em calda e ananás fresco, cobertas e algum bacalhau. Depois começou a contrabandear cebolas, feijão, nozes e uvas passas e louças. Houve um ano em que vendeu milhares de quilos de presuntos trazidos de Espanha. Muita gente de Chaves andava no contrabando.
Éramos às 50 pessoas ali ao mesmo tempo, homens e mulheres. Eram bichas de pessoas. Aqui havia muita gente a fazer contrabando. Era uma parte de Chaves que fazia contrabando, uns de noite, outros de dia. Acho que havia mais de 1000 pessoas a trabalhar no contrabando. Ia-se lá buscar, porque dava lucro para a gente aqui vender. (Marquinhas, 24-1-2008)
Aos poucos, Marquinhas começou a arranjar pessoas que trabalhassem para ela. Transformou-se em patroa. Entre aqueles que tinham gente a trabalhar para eles, havia um acordo em relação aos preços a pagar por cada tipo de mercadoria. E esse acordo não se quebrava.
Comecei a juntar pessoal, cheguei a ter 70 e tal pessoas que trabalharam para mim ao mesmo tempo. E depois aquelas 70 e tal pessoas iam trazendo os embrulhos, conforme podiam. As pessoas que trabalhavam para mim eram todas do concelho de Chaves, ali de Faiões, de Santo Estêvão, das aldeias da fronteira, mas da cidade tínhamos muitas pessoas, mulheres, homens, canalha, grandes e pequenos. Estava tudo! Só não trabalhou quem não quis. Havia uma tabela de preços para cada mercadoria. Para bacalhau era 25 escudos o quilo, se fosse o grande era 30 escudos. O bacalhau pequeno custava 250 escudos o quilo e o grande já custava 300 ou 400 escudos, conforme. As bananas eram 150 escudos cada caixa. A caixa tinha 12 quilos. O feijão não estou bem certa, mas acho que eram 10 escudos o quilo, as cebolas, sete escudos e meio, os presuntos já não lhe sei dizer, só foi um ano. As latas de ananás eram quatro ou três escudos cada, mas já não estou certa. O azeite dava-se 10 escudos por cada garrafão de cinco litros. Era uma tabela certa, para toda a gente. Quando se fizesse um preço, ou que se aumentasse, o preço era igual para os trabalhadores todos. Com a gente que tinha pessoas a trabalhar para elas, combinavam-se os preços para não haver problemas. A gente pagava a todos o mesmo. Igual. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
A partir do momento em que Marquinhas começou a ter gente a trabalhar para ela, deixou de passar a fronteira com a mercadoria às costas. Se de início comprava pequenas quantidades de mercadorias a comerciantes que tinham lojas em Feces, depois passou a ir a Verin adquirir quantidades maiores de produtos, sobretudo de bananas e de bacalhau. O contrabando obrigava a toda uma logística já montada na parte espanhola. Uma comerciante galega de Feces fazia, do lado de lá, o contraponto a Marquinhas. Guardava no seu armazém as toneladas de mercadoria que Marquinhas tinha encomendado em Verin e controlava as saídas de bacalhau, bananas e outras mercadorias para o lado de cá. Essas solidariedades transfronteiriças eram incontornáveis para garantir o sucesso da empreitada.
É a tal coisa, comecei com três ou quatro, mas a mim fazia-me falta a mercadoria e às pessoas fazia falta o trabalho. E vinham aqui pedir para trabalhar para mim. Se eu precisava dizia: “Trabalhe, sim. Vá à M., carregue, aponte aquilo que traz, que ela lá aponta também e eu aqui também”. Eles iam e eu ficava do lado de cá com o carro de praça à espera. O meu filho mais velho ainda trabalhou muito, muito, muito comigo. Daqui lá são 11 quilómetros. Nós saíamos um bocadinho antes da fronteira. Depois andávamos três, quatro quilómetros, nem isso, para passar até Feces. Fazia-se a pé. Por andarmos lá tantos, até se faziam caminhos no chão. E depois tornávamos a vir. Ia só um chamar o carro, enquanto os outros ficavam escondidos. Os carros estavam parados num café, na fronteira. Lá lhe fazia sinal que eles já estavam avisados. O carro ia ao sítio para carregar, que havia muitos sítios para carregar. Havia caminhitos no meio do pinhal para irem os carros, de tanto passar por lá. Depois, deixei de ir à fronteira. Mandava trazer as coisas e estava aqui a tomar conta do descarregar, do carregar. Depois comecei a ir a Verín comprar grandes quantidades. Ou ia de camioneta, ou num carro de praça com outras que também iam comprar mercadorias, ou no carro de colegas. Com o meu marido era raro ir, que ele não gostava de se meter nestas coisas. Fui muitas vezes sozinha. Fazia o negócio, ficava tudo comprado. Depois os espanhóis traziam para Feces e em Feces a mercadoria ficava guardada num comércio, e depois nós é que fazíamos a passagem para cá. As louças, o azeite, o óleo, feijão, cebolas, bacalhau, bananas, essas coisas assim. Bacalhau era às toneladas que se comprava, e bananas era sempre aos 5 mil quilos de bananas, ou 10 mil quilos, conforme as encomendas que tivesse. O bacalhau punham-me aos embrulhos de 12 quilos e meio, que era quanto pesava cada fardo. A M., lá no estabelecimento, entregava e assentava o nome e as mercadorias, e eles também assentavam no papelinho deles e eu chegava aqui e assentava o que eles traziam. Confirmava com todos, porque eram muitos. Para saber o que perdiam, porque muitas das vezes eles perdiam às 50 caixas, porque eram apanhados pela guarda. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Marquinhas, embora se fizesse acompanhar pelo filho mais velho, não permitia que a filha, Lila, a acompanhasse nas viagens do contrabando. Embora andassem mulheres no contrabando, Marquinhas considerava que devia proteger a filha dos riscos que estavam inerentes à prática de andar a passar mercadoria na fronteira. Isso não significa que a Lila estivesse totalmente arredada do negócio, pois ficava na retaguarda, em casa, a receber as mercadorias. Passar a linha de fronteira com mercadorias contrabandeadas tinha os seus perigos. Isso não impedia que homens, mulheres, rapazes e raparigas e mesmo crianças o fizessem, mas existia uma linha de corte, no género, que revelava atitudes mais ou menos afoitas. As mulheres, se capturadas pelos guardas de um e de outro lado da fronteira, mostravam-se submissas. Perdia-se uma carga, mas não se arriscava a vida. Os homens reagiam e arriscavam muito mais serem atingidos a tiro. As mercadorias eram transportadas às costas na passagem da linha de fronteira, os pés metidos na água, mas do lado de cá havia os carros de praça, carros e camionetas particulares e motociclos, para depois dar fuga. As camionetas com maior capacidade eram utilizadas quando as cargas eram consideráveis. Mas o contrabando exigia também que os guardas de fronteira, portugueses e espanhóis, fossem devidamente corrompidos, com mercadoria ou com dinheiro. Os guardas deixavam passar uma parte e apreendiam outra. Combinavam-se quantidades e preços.
Tive muitas peripécias. A gente passava noites e noites à espera dos rapazes que traziam em motas, em carros, e eu tinha que estar a tomar conta. Umas vezes ficava a minha filha, umas vezes ficava eu. Vinha um, trazia dez caixas, vinha outro, trazia vinte. Ainda foram uns quinze anos de contrabando. Eu nunca parava, de dia e de noite. Andava a gente sobressaltada. Nunca dormia um sono normal. Cansei-me tanto! Toda a gente sabia que eu fazia contrabando, mas depois a gente paga a dois ou três guardas e pronto…mas estes, para não ficarem mal vistos pelos outros, também de vez em quando têm de fazer uma apreensão. Se passa um mês, passam dois, passam três e não tiram nada a mim, há coisa. E para o prejuízo não ser tão grande, avisavam que vinham. No contrabando, houve gente que morreu, três pessoas. Por acaso, nenhuma trabalhava para mim. Foi uma questão de sorte. A guarda atirava. Nunca vi nenhum a morrer, mas houve uma vez em que sentimos os tiros, fugimos logo para outro lado, nunca pensando que tivesse acertado. Mas daí a um bocadinho já se sentiam os gritos. Foi um homem que morreu. Às mulheres também atiravam mas nunca era tanto, porque a gente não resmungava. Mas os homens diziam-lhes “Vocês são uns gatunos, vocês isto, vocês aquilo”. Nós caladitas…no grupo em que andava, nunca atiraram tiro nenhum. Mas, uma vez, fui com o meu filho mais velho carregar uma camioneta de carga. Carregámos no lado de cá da fronteira. Falei com dois guardas e um disse: “Ó Marquinhas, dá-me 50 contos e vai lá carregar as camionetas que quiser toda a noite”. E eu disse “Mas veja lá, que não haja problemas”. “Não há, eu responsabilizo-me por isso”. E nós fomos. Eu chamei o pessoal para trabalhar naquela noite. Duas carradas trouxemo-las muito bem, mas a terceira…pumba, apareceram outros guardas com que eles não estavam a contar. E como nós tínhamos ordem para arrancar, continuámos, mas eles mandaram sete tiros à camioneta, aos pneus, e furaram os pneus todos. Ficou a camioneta no meio da estrada. Eu tinha ido num carro, na camioneta ia o meu filho. Eu senti aqueles tiros e fui para o sítio onde estava a camioneta! “Ai, meu Deus! Vamos ver o que é que se passa!”. Quando cheguei à beira da camioneta, vi que estavam os pneus furados e estavam guardas, os que tínhamos combinado e outros. Os que estavam combinados diziam “Peça-lhe a ele, e se ele lhe der ordens…por nós…”. O outro dizia “Peça-lhe a ele”. Ali andei, como uma boneca de um lado para o outro, mas lá conseguimos trazer a camioneta. Tive muita sorte, mas também sabia falar com eles. Houve uma altura em que o capitão nos apreendeu uma mercadoria, uma carrinha cheia de mercadoria que levava a fatura, mas ele lá se apercebeu que a fatura já não estava como devia ser, que estava com aldrabonadas. O meu marido foi comigo, porque o senhor da camioneta telefonou logo a avisar que estava preso. Quando chegámos, o meu marido alterou-se “Vocês ainda são mais gatunos do que nós, mais contrabandistas!”. O capitão disse para os guardas: “Vocês, quando os encontrarem com alguma coisa na estrada, tirem o que puderem”. Não gostou das palavras do meu marido. Tudo sabia, mas tudo estava caladinho. Passados 15 dias apanhou-me com três carros carregados. Vínhamos de Feces para cá, carregámos o primeiro carro, vinha muito bem, carregámos o segundo, aparece ele, carrego o terceiro, ainda estava parado connosco. Ele disse: “Dona Marquinhas, aquilo que disse ao seu marido, é aquilo que a senhora vai pagar”. Eu comecei a chorar e disse: “Ó nosso capitão, eu não tenho culpa nas asneiras que ele faz, nem que ele diz, porque se fosse um filho, eu dava-lhe umas chapadas e educava-o à minha maneira, mas o marido não posso. O nosso capitão compreende que se a sua esposa fizer uma asneira grande, o senhor não a vai matar por causa disso. Têm de se compreender um ao outro da melhor maneira”. E ele disse: “O que vale à senhora é que sabe mamar na mãe e na cabra alheia. O que lhe vale são as suas maneiras de falar”. E deixou-me ir, tirou-me um carro, mas deixou-me vir com dois. Ele ficou com a mercadoria, mas para levar para a fronteira. Ele tinha que dar baixa das coisas na fronteira. Muitas vezes eles retiravam para eles e vendiam, tudo beneficiava conforme se podia. Toda a gente sabia, mas eles, os guardas, ganhavam tanto como eu. Mas nunca, nunca, graças a Deus, fui presa. Eu até cheguei a ter os carabineiros a trazerem-me carradas e carradas de coisas. Às vezes chegavam aqui com o jipe carregadinho de bacalhau ou de bananas. Mas eles também ganhavam o deles! De qualquer maneira, dava sempre jeito, porque a mercadoria vinha mais direitinha e a gente metia sempre o melhor produto. Porque eles nunca perdiam nada. E as pessoas que vinham a pé perdiam muitas vezes. Roubávamo-los sempre um bocadinho! Se fosse bacalhau, roubávamos sempre 100 quilos. Traziam 500 quilos e a gente só pagava a passagem de 400. A gente metia no jipe 500 quilos de bacalhau e dizia que eram só 400. Porque eles cobravam o frete deles. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Com o dinheiro gerado pelo contrabando, Marquinhas comprou um terreno em Chaves e construiu uma casa, e mais tarde, abriu dois comércios para disfarçar o vaivém de mercadorias contrabandeadas. Vendia para Chaves e para o resto do país.
No comércio vendia as coisas que comprava nos armazéns retalhistas aqui de Chaves, mas certas coisas do contrabando que podia vender aqui, também ia vendendo. Mas as coisas do contrabando eu amontoava e vendia em Chaves, a casas muito grandes que havia aqui, armazenistas, Campo e Gado e a Socidal, e a comerciantes de toda a parte do país. Do Porto, de Guimarães, de Fafe, de Lisboa, de Coimbra. Tinha mais do norte do país. Havia comerciantes com casa aberta e havia muitos que nem casa aberta tinham nem armazém, mas levavam as cargas e entregavam naquelas casas, eram só transportadores. Também vinham aqui muitos feirantes comprar para vender nas feiras. Ouviam dizer que eu tinha mercadoria, porque lhes indicavam o meu nome. Eu também quando não tinha, dizia: “Olhe, vá a casa de tal que deve ter”. E começou-se aquele movimento assim. Depois comecei a ficar com o contacto das pessoas e começaram a encomendar: “Quero 2000 quilos de feijão, ou de cebolas, ou de bacalhau” e a gente ia carregando e quando tinha a carga feita, telefonava-se e a pessoa vinha e carregava. E já deixava outra encomenda. No meio tempo, já vinha outro que já queria isto, já queria aquilo. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
A permanência das mercadorias no armazém obrigava a toda uma engenharia de faturas usadas uma e outra vez para permitir a circulação, sem que as mesmas fossem apreendidas pela Guarda Fiscal.
Para termos as coisas no armazém, eu precisava de faturas. Então tínhamos que ir arrematar nos leilões as coisas que tinham sido apreendidas. Os guardas da fronteira avisavam-me que ia haver uma arrematação, que vinham lotes para o tribunal de Chaves, às vezes às 200 caixas de bananas, às vezes 200 ou 500 quilos de bacalhau. A gente comprava 1000 quilos, mas vendia 10 ou 20 mil quilos. As quantidades que tínhamos no armazém tinham que ser iguais às quantidades das faturas das arrematações. Mas se essa fatura não fosse apanhada pelos guardas quando se fazia o transporte das mercadorias, servia muitas vezes. A gente vendia às 500 caixas de banana por dia, o bacalhau chegava a vender aos 3 mil quilos por dia. Os comerciantes vinham aqui buscar a mercadoria, a gente passava a fatura e se, no caminho de volta, aquela fatura não fosse apreendida pelos guardas, os comerciantes chegavam ao destino, avisavam que já não havia perigo e depois passávamos outra fatura com os mesmos números, as mesmas coisas, às vezes cinco, seis ou vinte vezes. Quando se passava Fafe, já não havia problema, porque só os guardas daqui é que percebiam como a gente fazia. Quando a mercadoria chegava ao destino, os homens traziam outra carga de Espanha, ou outras vezes tínhamos escondida a mercadoria noutros sítios. Outras vezes ia eu levar a mercadoria. Tinha dois ou três fregueses que me pagavam bem, e lá ia com o meu marido ou com um senhor e a mulher dele numa carrinha de caixa aberta. Para levar a mercadoria, eu ia sempre até Vila Pouca de Aguiar que era a zona mais perigosa. Eu ia num carro de praça à frente, para ver se havia polícia, e a mercadoria ia depois nas carrinhas. Eu ia comunicando: “Pode vir até tal sítio”; “Fuja, esconda-se que estão aqui!”. Já havia telemóveis. O primeiro telemóvel que comprámos para o carro, custou 550 contos. Era tão grande que parecia uma mala! Eram dois aparelhos. Um ia no carro de praça e outro ia na carrinha e comunicávamos um para o outro. Já tínhamos sítios certos para parar na estrada à espera das indicações de quem ia adiante. E às vezes fugíamos. Uma vez, quase meti a carrinha dentro de uma igreja! A fugir da polícia! Foram dar connosco quase metidos na igreja! Fui apanhada muitas vezes. Mas nunca me prenderam! Mas fui muitas vezes a tribunal por causa dos papéis, das faturas e por causa dos rapazes que trabalhavam para mim, que às vezes ficavam com as motas presas. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Apesar dos perigos  que correu, dos prejuízos e do desgaste físico que lhe abalou a saúde, Marquinhas faz um balanço positivo do contrabando.
Compensou o trabalho, os sustos, as aflições e tudo. Ainda deu para eu fazer as casitas, e se não fosse o contrabando ainda hoje não tinha um barraco. Se soubesse ler e escrever, eu tinha-me defendido bem melhor na vida. As pessoas que trabalhavam para mim, porque muitas vezes perdiam caixas e caixas e eu não assentava logo, porque não sabia, punha os números mal, confundia este com aquele…e quem perdia era a Marquinhas. Depois fiquei doente, depois desses anos todos a trabalhar como uma moira e o médico reformou-me. Tive que deitar os comércios abaixo que não podia ter nada em meu nome. Foi há 15 anos. Tinha 54 anos. (Marquinhas; 24-1-2008 e 13-2-2009)

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Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
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