sábado, 25 de fevereiro de 2012

CARVOADAS I



Na serra da Lagoa, num tempo em que havia limites e em que as pessoas viviam debilitadas, homens e mulheres, rapazes e raparigas da aldeia de Gralhas faziam carvoadas às escondidas.
Nesse tempo, trabalhava-se para o caldo ou para a merenda. A produção de carvão, mais frequente nos meses frios de inverno, permitia compor o débil orçamento das casas:
Mas a vida era assim, a gente não tinha de onde lhe viesse nada, tinha que comer. Valíamo-nos disso, da floresta, e depois a gente semeava a batatita, como agora, as couvinhas, cenoura, cebola. A gente aqui não passa fome, mas dantes passou-me muita, era uma sardinha para três. A terra dá tudo (Fátima, 13-7-2011).
A memória coletiva referente às últimas carvoadas de Gralhas remonta à década de 1960, embora nos anos de 1970, já depois da Revolução de abril, ainda se tenha produzido, ainda que esporadicamente, o carvão.
Havia quem fizesse carvão porque não tinha outra forma de se sustentar. Eram os cabaneiros sem terras próprias que, no verão, se ocupavam dos trabalhos agrícolas nos terrenos dos outros e, no inverno, a par das carvoadas, guardavam o gado dos proprietários.
Mas havia, também, quem fizesse carvoadas apenas para ter dinheiro para comprar um pano para fazer uma blusa ou uma saia. Estas carvoadas esporádicas, que não se enquadravam numa prática de sobrevivência financeira da família, eram sobretudo realizadas pelos mais jovens. Sozinhos ou em grupo, com um conhecimento mais ou menos sólido sobre todas as etapas do processo, usavam o dinheiro resultante da venda do carvão para aquisição de roupas ou para poderem ir a alguma festa da aldeia ou de aldeias vizinhas.
Comecei a fazer carvoadas com 13, 14 anos Numa ocasião, que eu queria vestir uma roupinha à minha irmã, tinha de ganhar dinheiro que a minha mãe, coitada, não tinha para mo dar. E, então, fiz muito carvão e a minha irmã foi comigo vender. E depois ela já era uma mulherzinha e eu disse-lhe: já tens que andar vestidinha como ando eu, e quanto custará? Outra ocasião, uma amiga minha disse assim para mim: ó Adília vem aí a senhora da Saúde e eu queria um vestido e a minha mãe não mo compra, tu podias ir à carvoada comigo. E eu digo-lhe assim: e tu sabes fazer carvão? Tu sabes arrancar torgos? E ela disse: mas tu ensinas-me! Fiz carvão até aos 19 anos (Adília, 18-8-2011).
A grande dificuldade na produção do carvão residia na interdição da sua prática. De facto, a ilegalidade das carvoadas - até para cortar o mato era necessário uma licença - obrigava a que parte das operações técnicas tivessem de ser realizadas durante a noite:
Quem não tinha de comer tinha que andar sempre assim ao sobressalto (Aida, 22-7-2011).
Temiam-se, para além dos guardas florestais, os rondistas, os homens do terreno que a guarda enviava para a serra com o objetivo de impedir o corte dos arbustos e a queima das urzes. Havia guardas florestais e rondistas mais rigorosos e com pouca empatia para com os infratores:
Ainda fui responder à mor do carvão, mas não deu em nada. Tinha 17 anos. Porque eu namorava com um rapaz e tínhamo-nos zangado e vínhamos embora de queimar o carvão e diz ele assim: não o haveis de trazer, cangalho! E eu respondi-lhe assim: não, mas trago, c...! E eu não sei, foi-nos acusar ao guarda! E depois no tribunal perguntaram-me como é que fui fazer o carvão, porque precisava, se queria vestir tinha de o ganhar que a minha mãe não tinha para mo dar. E depois deram-me pena suspensa, não sei se foi três ou quatro anos, mas pagar não paguei nadinha. Nadinha deste mundo. E foi assim a vida do carvão (Adília, 18-8-2011).

2 comentários:

  1. Era duro,muito duro.
    E a repressão sobre o povo está a voltar.

    Cordial abraço,
    mário

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  2. Sim, é difícil imaginar hoje em dia o que era viver assim...sem o básico dos básicos

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Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
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