quarta-feira, 22 de junho de 2011

SOBRE A DIVERSIDADE E AS VERSÕES HEGEMÓNICAS

Parámos em Cambezes do Rio depois de termos estado a fazer as primeiras filmagens com o ferreiro, o sr. Fernando. Buscava uma tia do Padre Fontes que o mesmo me tinha indicado ontem quando o fui visitar a Vilar de Perdizes. O objetivo era recolher informações sobre os ramos da boda.
O Padre Fontes tinha-me dito que nas aldeias do rio, Cambezes e Pedroso, a prática era mais vincada, mas que há muito estava a esmorecer. Agora pouca gente faz os ramos da boda. O ramo da boda é coisa das mulheres. Numa altura em que a toda a aldeia dos noivos era convidada, as mulheres cotizavam-se para comprar os bolos que enfeitavam os ramos.
A caminho da casa que me tinha sido indicada como pertencente à tia do Padre Fontes, mas sem muitas certezas de estarmos na direção correta, encontrámos uma mulher a quem dissemos ao que íamos. Três palavras trocadas e eu já tinha decidido sair do carro e fazer logo ali uma entrevista: Eu tive cinco ramos!
A descrição da D. Maria (que já prometeu tentar encontrar as fotografias da boda para que eu possa ver imagens dos ramos) fez-me recordar, mais uma vez, a diversidade de interpretações, que espelham experiências de vida distintas, sobre o mesmo assunto.

Também anteontem, nas filmagens que efetuámos no Pólo de Salto, D. Benta me chamava a atenção para as diferenças entre as capas de burel de aldeia para aldeia. Comparando duas fotografias expostas na sala, D.Benta dava conta das diferenças: E aquela senhora tem a capa diferente daqui. Em cima, o feitio, mesmo a lã e tudo, não é nada perfeito como nós aqui. O próprio pano não é como este. Este tem outro trabalhar, outro saber, fiar, tecer, no pisão. Não são as mesmas mãos, as mesmas zonas.

Não há realidades homogéneas. Por mais que isso seja conveniente a quem não busca mais do que leituras superficiais do terreno. E a riqueza da pesquisa está, também, em etnografar a diversidade. Por mais que isso desafie os olhares cristalizadores sobre a cultura.  



(Ecomuseu de Barroso - Sede)

Por aqui, já ouvi dizer capa e capucha. Se uns me disseram que o avental de costas é coisa que nunca por aqui se usou, outros afirmam o contrário. Já vi burel (das capas ou capuchas), e não estou a referir-me ao burel de produção industrial, com tons e texturas completamente diferentes.
A gestão desta diversidade é ainda mais complexa quando estão envolvidas estratégias de patrimonialização. É possível evitar as versões hegemónicas que silenciam as interpretações que lhes são menos convenientes? Creio que sim. Uma patrimonialização feliz é aquela que dá conta da diversidade. E uma patrimonialização feliz, uma patrimonialização que envolve as populações, as diferentes populações, acaba por ser a mais eficiente. Porque é também aquela que mais beneficia quem deve beneficiar: as pessoas.


(Pormenor da capa de burel e lenço. Ecomuseu de Barroso - Sede)

4 comentários:

  1. ...e ainda, para além dos objectos e do como são criados, a própria maneira de os usar, ou vestir, como no caso das capas e capuchas, que também tem os seus diferentes preceiros. O que a D. Maria de Paredes do Rio se riu de mim quando experimentei a capa dela, por não a saber vestir mesmo bem (quando eu, ignorante, pensava que bastava conseguir equilibrá-la sobre a cabeça).

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  2. Rosa
    Eu também estava convencida que bastava pô-la por cima de nós :) Fui ver a fotografia da D. Maria. De que tipo de burel era feita a capa dela? A capa da D. Benta que experimentei, a tal que ela chama de "verdadeira" é muito maleável e ajusta-se na perfeição à nossa cabeça e corpo. Mas quando ela experimentou a capa de burel industrial teve muito mais dificuldade em enrolar-se na mesma para me explicar como eram usadas. Por isso é que eu já escrevei aqui que aquela capa com 7 anos já não me escapa :)

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  3. era uma capa de burel manual de certeza, mas já não me lembro bem do peso porque experimentei várias outras entretanto (e uma mesmo antiga no mesmo dia que me arrependo imenso de não ter comprado). O espaço para a cabeça parece muito mais bem desenhado e cortado nas capas feitas para uso próprio, mas aposto que o uso também as afeiçoa à cabeça, tornando-as mais confortáveis.

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  4. Rosa
    Já reparei que há diferentes formas de talhar o capelo (é assim que D.Benta chama à parte que cobre a cabeça). Este é, também, um aspeto que pretendo abordar na pesquisa: os diferentes modelos de capas/capuchas. Sim, é bem provável que o burel se vá adaptando, moldando ao corpo e à cabeça. O burel produzido de forma industrial é que me parece carecer desta plasticidade. Tenho um casaco feito deste burel que comprei há mais de 10 anos nas Capuchinhas de Montemuro, e que uso com bastante frequência, pois é bem quente, mas mantém a rigidez que tinha no início.
    Uma curiosidade. D. Benta e uma outra senhora disseram-me que as capas eram postas a secar por cima da burra da caldeira para apanhar o fumo, pois o cheiro a fumo impedia que quando andassem no monte a guardar os rebanhos, as doninhas se aproximassem dos anhos e os picassem. E para impedir que as doninhas entrassem pelos buracos das cortes, punham pedaços de panos velhos, também a cheirar a fumo, ou então, cascas de laranja.

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