quinta-feira, 23 de junho de 2011

DESAFIOS


Costumo dizer, meio a brincar, que escrever sobre a comida não é apenas uma vingança primária porque não segui a carreira de cozinheira ou de padeira. Escrever sobre a comida foi uma das formas de registo que encontrei para contrariar a sua efémera propriedade, uma materialidade que teima em desaparecer tão rapidamente. O exercício da fotografia, embora mais recente, veio complementar o primeiro formato de registo. Admito que me inquieta o caráter transitório da comida na mesma proporção que me fascinam os sabores, os odores, as texturas que a compõem e as histórias de vida das pessoas que a preparam e a degustam. Mas esta é somente parte da resposta. Existe, também, um confesso voyeurismo que se exercita sempre que espero vez na fila do supermercado e observo os carrinhos e os cestos de quem está à minha frente ou ao meu lado. O que comem estas pessoas? Que escolhas alimentares são ativadas num contexto de abundância e diversidade? Como se gerem as escalas locais e globais nesse processo de eleição e que papel desempenha, nessa gestão, o lugar que habitam? Que representações fazem essas pessoas daquilo que comem? E que histórias de vida sustentam essas escolhas? Porque, num jogo de espelhos, são também essas as questões que coloco, uma e outra vez, a mim mesma. E construo paisagens alimentares, imaginadas, à escala das casas de cada uma daquelas pessoas.Mais tarde, em 1996, num estágio voluntário efetuado no Museu de Arte Popular, elaborei um conjunto de fichas-guia destinadas a serem utilizadas pelos alunos do 1º e do 2º ciclos na visita a esse espaço museológico. Algumas dessas fichas focavam a utilização de objetos ligados à doçaria regional. Este foi, também, o primeiro projeto em que comida e museologia se associavam. Num museu que, na altura, não tinha qualquer tipo de serviço educativo a funcionar, assumir a responsabilidade de ser eu a comprar os materiais como cartolinas, lápis de cor, assim como alguns objetos para os miúdos poderem mexer e experimentar, deu-me a certeza de que um guia pode fazer toda a diferença na experiência museal. E também que com escassos recursos se pode fazer muita coisa.


No 2º ano da licenciatura em Antropologia fiz a primeira incursão na etnografia da comida. Um pequeno texto sobre as filhós e o respetivo registo fotográfico. Agora, olhando para trás, concluo que à época já tinha esta mania de fotografar comida. Mas a academia nunca incentivou os estudos neste domínio. Demasiado preconceito sobre uma temática considerada menor.

Posteriormente, já a frequentar o Mestrado em Ciências Antropológicas no ISCSP, procurei desenvolver, no âmbito das várias disciplinas, estudos que se enquadrassem no domínio da temática da comida.
Um dos trabalhos que mais gostei de fazer foi no âmbito da disciplina de Tecnologias Tradicionais Peninsulares, na qual desenvolvi uma pesquisa na área da tecnologia culinária sobre os bolos de azeite, junto da última padeira da aldeia das Donas, no concelho do Fundão.
Donas, aldeia onde nasceu a minha avó materna, sempre fez parte do programa das férias da Páscoa da minha infância e da adolescência. Viajavam as mulheres da família (avó, mãe, tia, prima e a mais nova que era eu) na linha da Beira Baixa, para lá carregadas de sacos vazios, de volta, transportando os enormes bolos de azeite. Mas havia sempre espaço para os pequenos bolos doces: esquecidos, cavacas, biscoitos e farta-brutos. Voltar às Donas, mais tarde, já de carro, com máquina fotográfica e caderno de campo, foi uma forma de me reencontrar com parte das minhas origens e de desvendar os segredos da preparação dos bolos de azeite pela última padeira da aldeia, hoje afastada do ofício pela idade e pela doença. Embora não fosse deliberado, acabei por assumir como projeto a preservação da memória desta mulher.
Um outro trabalho, no mestrado, que me deu um gozo tremendo fazer foi um projeto de uma maleta pedagógica sobre a alimentação dos Bijagós da Guiné-Bissau. Parti das fichas da coleção dos objetos ligados à preparação e ao consumo de comida existentes no Museu Nacional de Etnologia, para elaborar um conjunto de cadernos, relacionados com diferentes disciplinas do 2º ciclo.
Porém, foi o estudo da cultura culinária em contexto religioso, mais especificamente as representações socioculturais nos domínios da tecnologia culinária e dos rituais de comensalidade no Templo de Lisboa da Associação Internacional para a Consciência de Krishna, que viria a representar o primeiro grande investimento teórico e etnográfico nesta área: a dissertação de mestrado.
Os projetos de teor museológico seriam posteriormente retomados, com a coordenação editorial e a produção de conteúdos pedagógicos para um kit de apoio a uma exposição sobre o ciclo do pão, no Moinho de Alhos Vedros, na Moita.
Com o doutoramento, o meu trabalho de fundo no âmbito da comida, procurei entender de que modo é que as mulheres, nas suas experiências alimentares, privadas e públicas, quotidianas e festivas, expressam diferentes versões de uma cultura alimentar, e revelam a articulação de escalas locais e globais na construção de Chaves enquanto pasiagem alimentar plural.
Nesse sentido, procurei identificar e analisar diferentes versões da cultura alimentar através das narrativas de múltiplas experiências alimentares ilustradas por práticas, conhecimentos, processos, valores, crenças e representações do passado e do presente e capturar e esclarecer instrumentos, processos e estratégias de patrimonialização, identificando comidas, atores e eventos, e analisando criticamente a construção de memórias centrais e periféricas.
Confesso que após a entrega da tese, estava com uma indigestão de comida. E acreditava que não iria debruçar-me tão cedo sobre a temática. Mas é inevitável. Já quando estive no MAP, iniciei o estudo da coleção de pintadeiras pertencentes, em grande parte, a Francisco Lage e Sebastião Pessanha. Infelizmente, não pude dar continuidade ao mesmo. Talvez um dia o possa concretizar. E neste projeto em Montalegre, o património alimentar é um dos temas que estou a tratar, mais especificamente o mel, as filhós e os bastidores da Feira do Fumeiro.
É, naturalmente, uma área em que me sinto mais confortável. Busco, sobretudo, as interpretações que as pessoas fazem acerca do que cozinham e comem. Das histórias em torno dos instrumentos e equipamentos que usam. Porque creio, também, que essas histórias em muito valorizam esses instrumentos e equipamentos quando os mesmos são expostos em contexto museológico.

 
(Taça com milho-miúdo amarelo. Pólo de Salto do Ecomuseu de Barroso)

Um dos maiores desafios que este projeto me coloca tem a ver com o facto de abarcar um conjunto de temáticas sobre as quais não tenho investimentos prévios. Se, por um lado, a quantidade de informação nova pode ser avassaladora, por outro, obriga-me a um nível de alerta muito maior do que aquele que tenho em relação à comida. O que pode ser bastante vantajoso!
O tema do traje, concretizado na capa/capucha de burel, no avental de costas e na croça, tem-me colocado enormes desafios. Mas, confesso, que é um tema verdadeiramente apaixonante. Aguardo, com alguma ansiedade, o tempo mais frio para poder fotografar as mulheres usando a capa de burel nos seus afazeres diários e os homens usando as croças para guardar o gado.


(De cima para baixo: máquina de costura, lançadeiras e tear de franja. Pólo de Salto do Ecomuseu de Barroso)

Também me fascina esta redescoberta constante de pistas. No caso da D. Benta, como já havia filmagens sobre a tosquia e lavagem da lã (ao visualizá-las convenci-me que toda a lã era lavada após a tosquia e as entrevistas que já fiz a Benta vieram revelar que até é conveniente não proceder a essa lavagem), o objetivo seria o de recolher imagens em torno do fiar e dos trabalhos com as agulhas. Depois, acabou por se concluir que, para além disso, a capa ou capucha, seria central na pesquisa. Para o inverno estão prometidos serões de aprendizagem. Mas a D. Benta já me chantageou! Diz que só me ensina a fiar e a fazer meia se eu comer os caldos de couve temperados com carne que ela prepara! Diz que estou muito magra e branquinha e que tenho de ganhar gordura para aguentar o frio :)


(Dobadoura e sarilho. Pólo de Salto do Ecomuseu de Barroso)


Mesmo os temas que estão mais longe dos meus interesses pessoais, como o trabalho dos ferreiros, têm proporcionado momentos de descoberta inesquecíveis. Porque o terreno é isso mesmo: uma descoberta constante.



(A malhar o ferro. Ferraria do sr. Fernando)


(Afiar um foicinho no esmeril. Ferraria do sr. Fernando)

 

7 comentários:

  1. Olá Daniela,
    Descobri o seu blog há pouco tempo e gostei muito. Nos primeiros minutos tive logo vontade de ver posts mais antigos e hoje, já faz parte das visitas regulares. Apesar de não ter nenhum hábito de comentar em blogs, não resisto a escrever-lhe.
    Muito obrigada por partilhar a sua extraordinária pesquisa. Confesso que fico sempre com uma pontinha de inveja tanto das incursões acerca de lugares e pessoas como da parte gastronómica :P
    é engraçado porque estive recentemente no Alentejo e, ao conhecer um rapaz que aprendeu com o avô a fazer cozinhados com as mais inóspitas ervas e até líquenes das árvores, regressei a casa precisamente a pensar na riqueza e no interesse que a comida envolve...
    Aprecio muito tudo o que diz respeito a saberes tradicionais que, infelizmente, correm o risco de desaparecer. Por isso, admiro muito os trabalhos como o seu.
    Vou continuar a visitar o seu trabalho e também fico curiosa pelos registos mais invernosos!...
    Boa sorte e um excelente trabalho!
    Marta (também sou da Figueira da Foz!)

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  2. Marta
    A pesquisa de terreno não é assim tão romântica como, por vezes, parece :) Desde logo é um trabalho muito solitário. Não apenas porque nos faz viver longe de casa e dos nossos (bom, a certa altura, já nem sabemos bem a que casa chamar nossa), mas também porque os desafios teóricos e metodológicos são constantes e nem sempre existe uma equipa presente para discutir os resultados. Mas é essa solidão que também nos faz crescer como profissionais. É claro que o nível de ansiedade diminui com a experiência que vamos ganhando ao longo dos anos. Aprendemos a detetar pistas com mais facilidade, a gerir as relações sociais de forma mais serena e a lidar de modo mais distanciado com as negas que recebemos. Até agora, só uma abordagem correu mal e incomodou muito mais a minha intermediária, uma habitante local, do que a mim.
    Por isso, não vale a pena ter inveja :)
    Uma das razões pelas quais também escrevo no blogue sobre estas experiências no terreno, tem a ver com a possibilidade de dar visibilidade a algumas desta pessoas que fazem coisas fantásticas e que, em alguns casos, serão as últimas a fazerem-no. Se com as imagens e textos que coloco no blogue, alguém se interessar por essas coisas fantásticas e contribuir para que estas pessoas permaneçam no ativo, eu já fico satisfeita.
    Cozinhar com líquenes? Hum! Agora fiquei curiosa :)
    Obrigada pelo seu comentário. É sempre bom saber o que os conterrâneos dizem de nós ;)

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  3. Também fiquei muito contente por encontrar o seu blog. Certamente voltarei para conhecer mais sobre o nosso pequeno país mas ainda tão rico :-)

    Além de ser mais fácil fiar lã que não foi lavada (também li o post com a D. Benta) outras vantagens são a qualidade dos vestuários produzidos com tal lã: são mais "waterproof" e "windproof" devido à gordura natural que contêm. Estas qualidades são essenciais na protecção contra os elementos naturais. Toda a lã que é fiada antes de ser lavada vai sempre conter determinada quantidade de gordura mesmo que seja lavada muitas vezes.
    Resta mencionar a importância de se ter a vacina contra o tétano quando se fia lã que não foi lavada e da lavajem das mãos após a fiação (o que qualquer um fará porque as mãos ficam mesmo muito gordurentas).

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  4. Olá Maria :)

    Obrigada pela partilha de conhecimento. Não fazia ideia que a lã ludra era mais waterprof e windproof. Agora a parte da vacina contra o tétano é que me troucou as voltas. Estava convencida que fiar era tão inofensivo como fazer tricot :)

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  5. Fiar é realmente uma actividade "inofensiva" a não ser no conhecido caso da Cinderela. :-) É verdade que esporos de Clostridium tetani podem ser encontrados na lã das ovelhas que não foi lavada mas presumo que em Portugal a maioria da população tenha a vacina contra o tétano. Julgo que esta geração de mais idade nunca tenha questionado a importância de ter tal vacina, afinal a fiação deve ter feito parte das suas vidas desde muito cedo. Isso era algo que gostaria de saber,com que idade aprenderam a D. Benta e outras mulheres a fiar? E já agora de que tipo de madeira foi feita a lançadeira que está na fotografia dste post. Obrigada. :-)

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  6. Anónimo/a:
    Pronto. Agora já sei que para além das abelhas também devo temer esses esporos sacaninhas :)Nem sei quando levei a última vacina contra o tétano, mas seguramente há mais de 20 anos...corro riscos??? :-)
    A D. Benta diz que começou a fiar por volta dos 5, 6 anos. Ela diz que era normal lá em casa começarem tão cedo. Iam vendo e fazendo, aos poucos, todas as tarefas relacionadas com o ciclo da lã: fiar, cardar, torcer... A D. Rosa, de Gralhas, também aprendeu mais ou menos com essa idade. Quanto à madeira da lançadeira, não te sei responder, mas quando voltar ao Pólo de Salto recolho essa informação.

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  7. As lançadeiras são muito bonitas, gostava de exprimentar entalhar uma.Quanto às abelhas, elas são inofensivas. Elas é que deviam ter medo de nós.
    :-)

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